sábado, 15 de setembro de 2012


E lá se foi a KIGS

 

            Em 1937, ou seja 17 anos após José Vitorino ter começado (1920) o primeiro programa de rádio em língua portuguesa na Califórnia, na cidade de Stockton, batizado com o nome de Vasco da Gama, o casal Inácio e Margarida Santos começou em Tulare o primeiro programa de rádio em língua portuguesa nesta zona da Califórnia.  O programa Portugal teve grande sucesso e depois do casal Santos se aposentar, o programa continuou, com direção e locução de Joe Silva, que o modernizou e deu-lhe um cunho, e um estilo, bastante apelativo e de grande qualidade.  Tal como escreveu o Professor Doutor Eduardo Mayone Dias, no capitulo do seu livro A Presença Portuguesa na Califórnia, em 1939, tínhamos 13 programas de rádio em língua portuguesa no estado da Califórnia. E as cidades de Tulare/Hanford, e zonas circunvizinhas, tenham tido, ao longa da sua história de comunidades de origem portuguesa, uma longa e profícua relação com a rádio.  Desde 1937, portanto há 75 anos, que há rádio em português nesta zona.  Isto até há poucas semanas, quando a KIGS, a estação de rádio que transmitia em português 24 horas por dia, se silenciou. E agora a rádio será diferente.

            Cheguei aos Estados Unidos da América em Outubro de 1968.  Com dez anos de idade, o meu primeiro contacto com a nossa rádio foi em casa dos meus tios, José e Maria Toledo, (ambos já falecidos) quando sentados à mesa, após o jantar, ouvimos, em silencio total, o programa Ecos do Vale do casal Joaquim e Amélia Morisson.  Desde então que me tornei, particularmente na minha juventude, um ouvinte e fã da rádio em língua portuguesa neste centro/sul do Vale de São Joaquim.  Ouvi-as todos.  Tinha as minha preferências e anotava quase tudo do programa Ecos do Vale.  Os Morisson's eram os meus ídolos.  Tinham um português impecável, uma dicção imponente. 

            Com 18 anos, e com a irresponsabilidade e a irreverência de se ser jovem, atirei-me à rádio, e comecei, na estão KOAD de Lemoore, um programa de uma hora por semana, aos sábados de manhã, com o título: A Voz do Emigrante Português.  Daí passei para Tulare, para as estações KGEN e uns meses depois para a KCOK, onde o dito programa, passou a transmitir aos domingos entre as 6 e 7 da madrugada.  Com 20 anos de idade, e recém casado, a minha heroica e santa mulher, tinha a paciência de se levantar comigo, todos os domingos, às cinco da manhã, para irmos até à estação.  Eu fazia locução e ela atendia o telefone na secretaria.  Mais tarde veio a aventura da Rádio Aliança 80, em parceria com Joe Silva e Aires Madruga da Silva.  Um momento marcante na vida da rádio portuguesa desta zona, quer pela sua periodicidade (duas horas por dia), quer pela sua aposta numa programação baseada na informação e na formação.  Em 1982, entrei como um dos sócios (eramos dois) na rádio de circuito fechado: Rádio Clube Comunidade.  Um projeto único, ao qual dediquei quase dois anos da minha vida, e durante os quais, empobreci, economicamente, a minha família.  Em 1988, após uma ausência de cinco anos, apenas com alguma esporádica colaboração com a minha falecida, mas jamais esquecida amiga, Idalina Melo, no seu Aurora de Portugal, um dos programas mais populares aos domingos pela manhã, voltei à rádio.  Primeiro, com uma brincadeira semanal chamada, Rádio Lusíada.  Depois como um dos sócios-fundadores e o diretor de programação da KTPB.  Foi outra estação de circuito fechado, com a presença de quase todos os programadores independentes e trabalhando, no começo, 12 horas por dia, passando mais tarde para, 24 horas por dia.  Terminei essa aventura em Junho de 1993, quando decidi inscrever-me no ensino superior para fazer a minha formação académica, concluindo com um BA e um MA. 

            Porém, ainda no fim de 1993, cometi o erro de ser usado pela KIGS, fazendo, por uma mera gratificação mensal, um noticiário diário (segunda a sexta) com notícias locais ea duração de 8-10 minutos.  Digo erro, porque fui usado, pelos responsáveis, para criar ainda outra clivagem entre esta rádio e a KTPB.  É que em escassos meses foi me dito que não tinham dinheiro para me pagar.  Já se vê o truque!  Mais tarde, e por insistência do Padre Raul Marta, quando estava na mesa diretiva do Centro Português de Evangelização e Cultura fiz, mais uma vez de borla, e com a colaboração do Pde. Marta (nas conversas divergentes que tínhamos) um programa chamado Dimensão 2000.   Uma produção meramente cultural, que foi riscada da programação porque, como me foi dito: a comunidade não queria cultura.

            Daí que a rádio em língua portuguesa (como outras organizações comunitárias) tem sido uma componente importante da minha trajetória no estado da Califórnia.  A rádio fez parte intima da minha vida e, para bem, e para mal, fez parte da minha família durante muitos anos.  E nos últimos anos, particularmente na última década, tenho sido um observador atento da nossa rádio.  Com estas vivências, e com estas experiências, sinto-me, perfeitamente à vontade, para dissertar e comentar o estado da rádio em língua portuguesa nesta zona da Califórnia.  É que com o silencio da KIGS, que poderá ser apenas por pouco tempo, a comunidade local tem tido a rádio (ou a falta dela) como tema de conversa.  Culpa-se tudo e todos.  Atira-se pedras, mesmo quem tem telhados de vidro.  Diz-se que quem não ouve rádio local é porque não quer, porque está por aí na Internet.  Lamenta-se que já não haja rádio, mesmo por quem nunca a ouvia.  Alguns falam da falta de qualidade que tinha, outros de uma rádio, com base em Hanford/Visalia, ter virado as costas à comunidade local. Enfim, fala-se, até para não se estar calado, como nos diz o provérbio popular.

            O que é certo é que lá se foi a KIGS, e, repito, por quanto tempo ninguém o sabe.  O que é certo é que a comunidade, se quiser ouvir algo local, pelo menos com algumas notícias dos eventos da comunidade de Tulare e Hanford (e cidades limítrofes) terá que, ou ouvir os programas que estão na NET, ou ir às missas e aos clubes.  O que também é certo, e sejamos honestos, é que estas duas pequenas comunidades não têm o peso económico para manter uma rádio em português, numa antena livre, 24 horas por dia.  Nem tão pouco há ouvintes que se justifique semelhante investimento.

            A realidade é que a KIGS não tinha anúncios (ou tinha pouquíssimos) e os únicos que faziam alguns trocos eram os programadores independentes.  A realidade é que a comunidade de Tulare/Hanford (e quiçá muitas outras) está mais americana do que portuguesa, e conta-se, pelos dedos de uma mão, as pessoas com menos de 50 anos a ouvirem, religiosamente, todos os dias, e várias horas por dia, a rádio em língua portuguesa.  A comunidade está diferente e a rádio, não a soube, ou não a quis acompanhar.

            Compreendo o nosso gosto nostálgico pelo tempo que passou e que não volta.  Como humilde leitor do que se escreve sobre o nosso estado de alma, a nossa idiossincrasia lusitana, aceito este nosso êxtase pelo Sebastianismo.  Mas neste caso, tal como em tantos outros da nossa história, quer no nosso país da origem, quer nas nossas comunidades, D. Sebastião não voltará, nem resolverá os nossos dilemas.  A comunidade de Tulare/Hanford necessita, como já o fez em outros momentos da sua vida coletiva, de pegar, como dizem em termos taurinos: o touro pelos cornos, e baseada na sua realidade, tentar construir algo que possa servir as necessidades de termos uma voz, que esteja connosco, e que saiba servir os interesses da comunidade mais idosa e menos integrada e a mais nova e totalmente integrada. 

            Estou convicto que isso só se fará se as associações quiserem trabalhar em conjunto, e se a comunidade (com os seus líderes) quiser ser objetiva sobre si própria.      

sábado, 21 de julho de 2012

Eu, pecador, confesso que acredito nas Comunidades Portuguesas da Califórnia


Para criar inimigos, não é

necessário declarar guerra,

basta dizer o que se pensa.

Martin Luther King



            A epígrafe apareceu no facebook, como muitas coisas aparecem, algumas uteis e outras perfeitamente supérfluas e muitas completamente patéticas.  É assim o facebook, e em geral, as novas formas de se comunicar.  Porém, na sua totalidade são meios importantes e extremamente benéficos para a criação de um mundo e de comunidades em progresso.  Criei alguma empatia com a frase de Martin Luther King, um dos meus heróis do século vinte, porque através dos anos tenho, com as minhas humildes crónicas, e as minhas opiniões a favor do progresso humano e de uma comunidade de origem portuguesa mais integrada e mais aberta, criado, como é óbvio, alguns inimigos.  Mas diga-se que também tenho feito muitos amigos.  Porém, a verdade é que com uns e com outros ainda acredito na nossa comunidade.  Não tenho uma visão apocalíptica da mesma, nem tão pouco me comove a saudadesinha de um tempo já passado, que não foi assim tão bom.  Nem vejo a comunidade a morrer como apregoam vozes, quase sempre pertencentes a quem não se consegue ajustar às novas comunidades que despontam à nossa beira. 

            A minha história é análoga à de muita gente vinda dos Açores e que na Califórnia plantou raízes.  Vim dos Açores com 10 anos.  Meu pai sonhava com as "Califórnias perdidas de abundância" como nos diz Pedro da Silveira no seu emblemático poema.  Via o caso do meu avô materno (o meu grande amigo que me contava histórias do far west americano) que em 18 anos de América havia feito um bom pé de meia.  Numa era em que uma casa e alguns terrenos não dava para viver, meu pai, olhava para a América como um lugar onde se vinha, durante alguns anos, para se voltar com os trocos necessários para, como ele (meu pai) dizia: "endireitar a vida." Daí que, quando um tio meu, de visita aos Açores depois de meia dúzia de anos de América, numa viagem de saudade e de extravagancia, explica que a América é tudo o que dizem, e mais.  Que prefere estar na América a ordenhar vacas do que na Terceira a ver uma tourada (é verdade, disse-o, na minha frente), meu pai ficou pronto para dar o salto.   E o projeto de meia dúzia de anos tornou-se, tal como aconteceu com a maioria dos nossos emigrantes, numa vida em terras americanas.  Não só viveu na América desde os 38 anos, como foi a sepultar nesta terra com a idade de 72 anos.  Aqui está, para sempre.

            Desde os 10 anos que a minha vida tem sido a América, e na América as comunidades de origem portuguesa.  Nas escolas, o meu mundo foi sempre um mundo rodeado da nossa comunidade.  As várias escolas primárias e secundárias que frequentei eram o mundo americano salpicado com tonalidades açorianas.  É que, como meu pai trabalhava na agropecuária, uma industria cujos funcionários nas décadas de 1960 e 1970 eram maioritariamente emigrantes dos Açores, as escolas que frequentava estavam repletas de filhos de emigrantes ou de recém chegados como eu.   Depois veio o trabalho na ordenha das vacas, durante quase três anos, a passagem pelo comércio, o gosto pela rádio em língua portuguesa e daí o envolvimento direto na comunidade com a idade de 17 anos.  E tem sido na zona de Tulare, no centro-sul do vale de São Joaquim que tenho trabalhado, estudado, festejado, chorado, enfim, vivido a minha vida de ativista cultural dentro da comunidade e de humilde observador da mesma.  Mas viver na, e com a comunidade, não impede de estarmos presentes no mundo americano, de sermos plenos membros da sociedade onde vivemos, onde plantámos raízes e as regamos com o nosso trabalho, a nossa participação cívica e as nossas vivências culturais.  É o que fazem as nova gerações.  

            Em quatro décadas de América, rodeada de Açores por todos os lados, tenho visto as mudanças que as nossas comunidades de origem portuguesa têm vivido.  Tenho escrito sobre as mesmas.  É sabido que as comunidades de hoje não são as comunidades de ontem.  Não o podem ser.  Não o devem ser.  Mas não acredito que as comunidades estão envelhecidas, as pessoas sim, e demasiados dos nosso pseudo líderes é que estão velhos.   As comunidades têm a capacidade de se renovarem e vemos isso um pouco por toda a Califórnia.  Não serão as mesmas comunidades do fim do século XX e ainda bem, porque o mundo não é o mesmo, nem tão pouco a sociedade americana é a mesma.  Não se pode, nem se deve pensar as comunidades portuguesas da Califórnia, com os olhos postos no passado.  As comunidades fazem-se de formas múltiplas.  O mal de muitos dos nossos líderes é que ainda olham ao conceito de comunidades dentro de um círculo muito fechado, de um paradigma completamente ultrapassado.  Faz-se comunidade, e vive-se Portugal e os Açores na Califórnia, todos os dias, e nas mais variadas formas e nos mais variados lugares.  Basta abrir-se os olhos e querer ver que há outras formas de se ser e de se viver a comunidade muito além dos moldes tradicionais, e alguns, sobrepujados. 

            Daí, eu pecador, acreditar, veementemente, que as comunidades, apesar da falta de liderança, e de alguns (sejamos honestos) maus líderes que tivemos, e ainda temos, sobreviverão durante muitas décadas.  A metamorfose está aí.  Em  alguns casos estamos a aproveitá-la para a mudança, em outros isso não acontece, mas todas resistirão.  Acredito ainda que alguns dos dilemas que tivemos, e temos, foram provocados por esses líderes e pseudo-líderes.  Foi (ainda o é, infelizmente) mais do que comum que alguns líderes mantiveram lideranças autoritárias.  Diziam-se democratas mas não praticavam os princípios da democracia.  Houve lideres que fizeram obra interessante, mas ao saírem da chefia, da posição de presidente ou diretor, preferiram, ou abandonar por completo o projeto, ou escolher e apoiar substitutos sem qualificações e sem visão, porque essa foi (talvez ainda seja) uma forma de perpetuar a falsa aura com que se habituaram a viver nas comunidades e para alguns, mais importante, a imagem apócrifa que cultivaram em outras comunidades e até mesmo (muito mais importante para muitos) nos Açores e Portugal Continental.  Tivemos fundadores que depois afundaram (ou tentaram fazê-lo) as organizações que ajudaram a criar.  E diga-se, a bem da verdade, que tivemos excessivos líderes (será que ainda temos?) muito mais preocupados com o próximo jantar, a próxima visita efémera de um político, a próxima oportunidade de aparecerem no pódio com discursos circunstanciais e sem qualquer inquietude sobre a construção de uma comunidade dinâmica e multifacetada.  E houve também (talvez ainda haja) quem teve medo de homens e mulheres com outras visões, outra abertura, outra dinâmica, outra liberdade e até os tentasse punir com insinuações falsificadas e táticas perversas .  Conheço, perfeitamente, essas nojências, porque, como outras pessoas, vivi-as na pele. 

            Mas a comunidade é muito mais do que os nossos pseudo líderes querem ou gostariam que ela fosse.  Por cada pessoa que ainda diz Amem aos sotainas de ontem há outras que escolhem, vivem e trabalham consistentemente para a passagem, nas mais variadas vertentes, do nosso legado cultural no seio da modernidade do mundo estadunidense.  Peço desculpa a muitos dos nossos dirigentes que ainda estão no século XX, mas a comunidade de amanhã, que já está a construir-se hoje, mesmo que a queiram acorrentar com ideias do passado não se deixará controlar e fará comunidade, à sua maneira (e ainda bem), dentro do multiculturalismo americano. 

            Eu, pecador, acredito, que as novas comunidades, para desgosto de alguma gente, (assumida e auto-erguida nos seus altares com pés de barro), continuarão a viver a sua herança cultural com o seu passado histórico mas sem os apertos do pretérito.

           

            Diniz Borges

            Junho de 2012