sábado, 21 de julho de 2012

Eu, pecador, confesso que acredito nas Comunidades Portuguesas da Califórnia


Para criar inimigos, não é

necessário declarar guerra,

basta dizer o que se pensa.

Martin Luther King



            A epígrafe apareceu no facebook, como muitas coisas aparecem, algumas uteis e outras perfeitamente supérfluas e muitas completamente patéticas.  É assim o facebook, e em geral, as novas formas de se comunicar.  Porém, na sua totalidade são meios importantes e extremamente benéficos para a criação de um mundo e de comunidades em progresso.  Criei alguma empatia com a frase de Martin Luther King, um dos meus heróis do século vinte, porque através dos anos tenho, com as minhas humildes crónicas, e as minhas opiniões a favor do progresso humano e de uma comunidade de origem portuguesa mais integrada e mais aberta, criado, como é óbvio, alguns inimigos.  Mas diga-se que também tenho feito muitos amigos.  Porém, a verdade é que com uns e com outros ainda acredito na nossa comunidade.  Não tenho uma visão apocalíptica da mesma, nem tão pouco me comove a saudadesinha de um tempo já passado, que não foi assim tão bom.  Nem vejo a comunidade a morrer como apregoam vozes, quase sempre pertencentes a quem não se consegue ajustar às novas comunidades que despontam à nossa beira. 

            A minha história é análoga à de muita gente vinda dos Açores e que na Califórnia plantou raízes.  Vim dos Açores com 10 anos.  Meu pai sonhava com as "Califórnias perdidas de abundância" como nos diz Pedro da Silveira no seu emblemático poema.  Via o caso do meu avô materno (o meu grande amigo que me contava histórias do far west americano) que em 18 anos de América havia feito um bom pé de meia.  Numa era em que uma casa e alguns terrenos não dava para viver, meu pai, olhava para a América como um lugar onde se vinha, durante alguns anos, para se voltar com os trocos necessários para, como ele (meu pai) dizia: "endireitar a vida." Daí que, quando um tio meu, de visita aos Açores depois de meia dúzia de anos de América, numa viagem de saudade e de extravagancia, explica que a América é tudo o que dizem, e mais.  Que prefere estar na América a ordenhar vacas do que na Terceira a ver uma tourada (é verdade, disse-o, na minha frente), meu pai ficou pronto para dar o salto.   E o projeto de meia dúzia de anos tornou-se, tal como aconteceu com a maioria dos nossos emigrantes, numa vida em terras americanas.  Não só viveu na América desde os 38 anos, como foi a sepultar nesta terra com a idade de 72 anos.  Aqui está, para sempre.

            Desde os 10 anos que a minha vida tem sido a América, e na América as comunidades de origem portuguesa.  Nas escolas, o meu mundo foi sempre um mundo rodeado da nossa comunidade.  As várias escolas primárias e secundárias que frequentei eram o mundo americano salpicado com tonalidades açorianas.  É que, como meu pai trabalhava na agropecuária, uma industria cujos funcionários nas décadas de 1960 e 1970 eram maioritariamente emigrantes dos Açores, as escolas que frequentava estavam repletas de filhos de emigrantes ou de recém chegados como eu.   Depois veio o trabalho na ordenha das vacas, durante quase três anos, a passagem pelo comércio, o gosto pela rádio em língua portuguesa e daí o envolvimento direto na comunidade com a idade de 17 anos.  E tem sido na zona de Tulare, no centro-sul do vale de São Joaquim que tenho trabalhado, estudado, festejado, chorado, enfim, vivido a minha vida de ativista cultural dentro da comunidade e de humilde observador da mesma.  Mas viver na, e com a comunidade, não impede de estarmos presentes no mundo americano, de sermos plenos membros da sociedade onde vivemos, onde plantámos raízes e as regamos com o nosso trabalho, a nossa participação cívica e as nossas vivências culturais.  É o que fazem as nova gerações.  

            Em quatro décadas de América, rodeada de Açores por todos os lados, tenho visto as mudanças que as nossas comunidades de origem portuguesa têm vivido.  Tenho escrito sobre as mesmas.  É sabido que as comunidades de hoje não são as comunidades de ontem.  Não o podem ser.  Não o devem ser.  Mas não acredito que as comunidades estão envelhecidas, as pessoas sim, e demasiados dos nosso pseudo líderes é que estão velhos.   As comunidades têm a capacidade de se renovarem e vemos isso um pouco por toda a Califórnia.  Não serão as mesmas comunidades do fim do século XX e ainda bem, porque o mundo não é o mesmo, nem tão pouco a sociedade americana é a mesma.  Não se pode, nem se deve pensar as comunidades portuguesas da Califórnia, com os olhos postos no passado.  As comunidades fazem-se de formas múltiplas.  O mal de muitos dos nossos líderes é que ainda olham ao conceito de comunidades dentro de um círculo muito fechado, de um paradigma completamente ultrapassado.  Faz-se comunidade, e vive-se Portugal e os Açores na Califórnia, todos os dias, e nas mais variadas formas e nos mais variados lugares.  Basta abrir-se os olhos e querer ver que há outras formas de se ser e de se viver a comunidade muito além dos moldes tradicionais, e alguns, sobrepujados. 

            Daí, eu pecador, acreditar, veementemente, que as comunidades, apesar da falta de liderança, e de alguns (sejamos honestos) maus líderes que tivemos, e ainda temos, sobreviverão durante muitas décadas.  A metamorfose está aí.  Em  alguns casos estamos a aproveitá-la para a mudança, em outros isso não acontece, mas todas resistirão.  Acredito ainda que alguns dos dilemas que tivemos, e temos, foram provocados por esses líderes e pseudo-líderes.  Foi (ainda o é, infelizmente) mais do que comum que alguns líderes mantiveram lideranças autoritárias.  Diziam-se democratas mas não praticavam os princípios da democracia.  Houve lideres que fizeram obra interessante, mas ao saírem da chefia, da posição de presidente ou diretor, preferiram, ou abandonar por completo o projeto, ou escolher e apoiar substitutos sem qualificações e sem visão, porque essa foi (talvez ainda seja) uma forma de perpetuar a falsa aura com que se habituaram a viver nas comunidades e para alguns, mais importante, a imagem apócrifa que cultivaram em outras comunidades e até mesmo (muito mais importante para muitos) nos Açores e Portugal Continental.  Tivemos fundadores que depois afundaram (ou tentaram fazê-lo) as organizações que ajudaram a criar.  E diga-se, a bem da verdade, que tivemos excessivos líderes (será que ainda temos?) muito mais preocupados com o próximo jantar, a próxima visita efémera de um político, a próxima oportunidade de aparecerem no pódio com discursos circunstanciais e sem qualquer inquietude sobre a construção de uma comunidade dinâmica e multifacetada.  E houve também (talvez ainda haja) quem teve medo de homens e mulheres com outras visões, outra abertura, outra dinâmica, outra liberdade e até os tentasse punir com insinuações falsificadas e táticas perversas .  Conheço, perfeitamente, essas nojências, porque, como outras pessoas, vivi-as na pele. 

            Mas a comunidade é muito mais do que os nossos pseudo líderes querem ou gostariam que ela fosse.  Por cada pessoa que ainda diz Amem aos sotainas de ontem há outras que escolhem, vivem e trabalham consistentemente para a passagem, nas mais variadas vertentes, do nosso legado cultural no seio da modernidade do mundo estadunidense.  Peço desculpa a muitos dos nossos dirigentes que ainda estão no século XX, mas a comunidade de amanhã, que já está a construir-se hoje, mesmo que a queiram acorrentar com ideias do passado não se deixará controlar e fará comunidade, à sua maneira (e ainda bem), dentro do multiculturalismo americano. 

            Eu, pecador, acredito, que as novas comunidades, para desgosto de alguma gente, (assumida e auto-erguida nos seus altares com pés de barro), continuarão a viver a sua herança cultural com o seu passado histórico mas sem os apertos do pretérito.

           

            Diniz Borges

            Junho de 2012

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